Aprovação da cana transgênica não foi unânime
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), aprovou a liberação comercial da cana-de-açúcar transgênica, voltada para a produção de açúcar, álcool e biodiesel. A votação, que terminou com 15 votos favoráveis e três contrários, ocorreu sob forte esquema de segurança para reprimir possíveis manifestações contra a aprovação da planta geneticamente modificada com a inserção de uma toxina capaz de matar sua principal praga, a lagarta Diatraea saccharalis, mais conhecida como broca da cana. Do lado de dentro, diretores do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), que desenvolveram a biotecnologia, comemoraram. "Fomos promovidos. Agora estamos na agricultura moderna", disseram, segundo integrantes da comissão.
O CTC é uma empresa de capital aberto, sediada em Piracicaba (SP), que tem grandes usineiros e produtores de cana entre seus maiores acionistas. O argumento do setor, defendido pelo voto dos 15 integrantes, é que a broca causa perdas anuais de R$ 5 bilhões em um setor dominado por 360 usinas que movimentam mais de R$ 100 bilhões ao ano. Uma perda que justificaria o investimento em torno de US$ 140 milhões, conforme especulação no mercado de biotecnologia, e a continuidade de pesquisas em busca de novas tecnologias capazes de obter transgênicos cada vez mais baratos e tolerantes a herbicidas.
Falhas
Os três votos contrários são de um representante do Ministério do Meio Ambiente e de especialistas em meio ambiente e agricultura familiar, que analisam os estudos apresentados pelo CTC desde o final de dezembro de 2015, quando foi protocolado o pedido de liberação. Eles chegaram à conclusão de que, a exemplo de todos os demais organismos geneticamente modificados (OGMs) aprovados na comissão, as pesquisas com a cana são cheias de falhas. E estão muito longe de atender às próprias regras do órgão criado para auxiliar o governo federal nas questões de biossegurança dos transgênicos.
No caso da cana, há lacunas quanto aos potenciais efeitos sobre organismos que não são o alvo das toxinas da planta modificada, aos animais e humanos que consumirem a cana in natura, e o risco de essas novas espécies virem a prevalecer sobre as espécies silvestres a partir dos cruzamentos entre ambas. Como a maioria das cachaças e o popular caldo de cana são obtidos com essas variedades silvestres, em um cenário assim essas bebidas também poderiam vir a ser contaminadas.
Professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante da CTNBio, Valério De Patta Pillar apresentou parecer em que pede diligência da comissão para correção das deficiências em experimentos de avaliação do risco ambiental e ausência de testes estatísticos, de avaliações dos efeitos do consumo da variedade de cana-de-açúcar por animais domésticos e por humanos.
Além disso, segundo o documento, faltam dados sobre a frequência com que ocorre o cruzamento da variedade com outras variedades selvagens, bem como sobre as espécies avaliadas, as técnicas utilizadas e os efeitos resultantes.
De acordo com o documento, o CTC minimiza o risco e a necessidade de testar os efeitos sobre a saúde humana e animal, afirmando haver “probabilidade muito baixa de que esta cultivar seja utilizada para fins de consumo in natura ou em processos artesanais”. Segundo o autor, a empresa parte do pressuposto de que seria possível total controle sobre o cultivo e sobre o destino dos canaviais que vierem a cultivar a planta transgênica.
Ainda conforme o parecer de Pillar, não foi avaliada a possibilidade de cruzamento da cana geneticamente modificada com outras canas muito comuns no país. Em vez disso, o CTC se limitou a buscar na literatura científica estudos realizados por outros grupos de pesquisa, de diversos países, sob o argumento de haver "um histórico de cinco séculos de cultivo seguro da cana-de-açúcar no país, sem qualquer relato de aparecimento de populações híbridas de cana-de-açúcar e espécies silvestres”.
Outra falha do CTC apontada pelo professor da UFRGS é não ter usado armadilhas adequadas para a coleta de lepidópteros, classe de insetos que inclui borboletas, traças e mariposas – em cujo ciclo de vida de uma delas está a broca. Por causa disso, nenhum lepidóptero foi coletado. Em compensação, foram coletadas dezenas de outros tipos, sem relevância para a pesquisa.
"Isso não justifica a omissão da avaliação exigida pela própria CTNBio e demonstra clara violação do princípio da precaução, que estabelece que quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada".
Faltou debate
Apesar da contundência, o parecer foi totalmente ignorado. Não chegou a ser debatido e muito menos respondido. A falta de espaço para discussão dessas falhas foi duramente criticada pelo presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e ex-integrante da CTNBio, o agrônomo Leonardo Melgarejo.
"Nos campos de cana, a carga de toxina inseticida Cry1Ab será 20 vezes superior ao que já ocorre nas lavouras de milho transgênico. Essa carga monumental ameaça de forma inédita os lepidópteros, trazendo grande preocupação a todos quanto aos danos ambientais", disse. "Além disso, o parecer de Valério revela que o estudo em organismos não alvo da toxina, que não usou armadilhas adequadas para essa classe de insetos, não coletou exemplar algum. Portanto, não se pode afirmar que seja inócua, que não afete esses insetos que em nada prejudicam a cana. E no processo, o CTC minimiza esse aspecto fundamental", afirmou.
O ambientalista, que é um dos autores do livro Lavouras Transgênicas – Riscos e Incertezas, chama atenção também para a rejeição, pela maioria de 15 votos, da recomendação de Valério De Patta Pillar de suspensão da votação da liberação até que a empresa apresentasse os dados atualmente inexistentes. "Por que estes 15 cientistas acreditam serem dispensáveis essas informações?", questiona. "O integrante da CTNBio, Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib, da Unicamp, reafirmou que é infundado o argumento de que estas toxinas já existem nas bactérias. E que uma vez expressado pela planta, esse gene Cry1Ab está prontamente ativos. Assim, não há necessidade de a planta ser ingerida por insetos para só então se tornar toxica".
Preocupação
A falta de estudos do CTC sobre o cruzamento da cana geneticamente modificada com outras espécies silvestres muito comuns no país, que pode levar ao desaparecimento de muitas dessas espécies, é vista com preocupação pelo pesquisador do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e ex-integrante da CTNBio, Rogério Magalhães.
"A empresa tem a obrigação de fazer essas pesquisas e de nos responder, entre outras coisas, quais são os agentes polinizadores. É só o vento? E se for, a quantos metros da planta ele carrega o pólen? Em vez disso, limita-se a afirmar que isso não tem importância quando é extremamente preocupante para o Ministério do Meio Ambiente", ressaltou.
De acordo com o pesquisador, outro temor é em relação aos impactos do gene CRY 1AB, inserido na cana pelo CTC para matar a broca, que não seria assim tão seletivo. "Pesquisas realizadas em outros países apontam que essa toxina provoca danos em outros insetos que estão na região de cultivo dessa cana e para outros animais que se alimentam desses insetos, além de afetar micro-organismos do solo e levar ao aumento da resistência dos insetos em outras culturas nas quais a tecnologia é empregada. São muitas as preocupações, para as quais não temos resposta."
Apesar das dúvidas e riscos, a CTNBio coloca no mercado uma variedade de cana aguardada por ruralistas e usineiros. A expectativa, segundo Magalhães, é que boa parte da safra de 2018 e 2019 seja colhida em canaviais geneticamente modificados. A safra 2016 e 2017, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), foi colhida em uma área correspondente a 10 milhões de hectares. A maior área está no Estado de São Paulo, com 5.728.285 hectares.
Cida de Oliveira
Fonte: Nova Cana